Os Estados Unidos são uma evidência do fracasso dos valores do cristianismo frente às ideologias econômicas modernas, especialmente o liberalismo econômico. Quando, em 1620, os primeiros peregrinos chegaram à costa do que hoje é o estado de Massachusetts e fundaram a colônia de Plymouth, o fizeram movidos por uma fé inabalável de que Deus estava com eles e que, sendo abençoados, prosperariam. Eles vinham em busca de liberdade religiosa e prosperidade. E prosperaram, prosperaram muito!
Religião e economia têm tudo a ver, e essa foi certamente a conclusão de Max Weber em seu clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Segundo Weber (2001), a ideia calvinista do trabalho como chamado divino e da prosperidade como evidência da bênção divina, somada à ênfase na disciplina pessoal, propiciou a base para a assimilação do espírito do capitalismo ou, como Weber chamou, “filosofia da avareza” (2001, p. 27).
O que tem a ver a avareza e o ethos de ganhar cada vez mais dinheiro com o cristianismo? Para o cristão da atualidade, basta acionar o gatilho da vocação divina ou da missão. Fazer prosperar um negócio pode ser visto como uma missão divina e, logo, deve ser realizada, mesmo a custo de sacrifícios (preferencialmente dos outros).
“America first” é a expressão concreta da tese liberal de que é o interesse próprio que impulsiona o crescimento econômico, e não a benevolência:
Não é da benevolência do padeiro, do cervejeiro ou do açougueiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nunca lhes falamos de nossas próprias necessidades, mas das vantagens que eles terão em nos atender” (SMITH, 1985, p. 33).
A religião, ao longo da história, serviu para legitimar o abuso de poder dos monarcas, a exploração dos servos, o extermínio de inimigos e outras barbaridades que nem convém mencionar. O problema da religião é que, como uma prostituta, tem seu corpo usado e logo rejeitado. Escritores bíblicos usaram a metáfora da prostituta para se referir ora ao povo de Israel no Antigo Testamento (cf. Oséias 1.2, Jeremias 6.3-9) , ora à Igreja no Novo Testamento (cf. Apocalipse 17.1-5). O capitalismo soube aproveitar a ética protestante e, como observa Weber:
O capitalismo vencedor, apoiado numa base mecânica, não carece mais de seu suporte… Nos Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de sua roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a associar-se com paixões puramente mundanas… (WEBER, 2001, p. 99).
Se, do ponto de vista ideológico/econômico, o capitalismo nos Estados Unidos não depende mais da religião para legitimar-se, do ponto de vista político, continua dependente. A Igreja (a prostituta) continuará sendo um instrumento necessário para legitimar o poder a serviço do acúmulo, da exploração e da opressão dos mais fracos.
Weber (2001) termina sua obra analisando dois possíveis cenários futuros diante da vitória do espírito do capitalismo sobre os valores cristãos. No primeiro, surgem novos profetas que põem o cristianismo em juízo e permitem um vigoroso renascimento de antigos valores e ideais. No segundo, restaria esse capitalismo selvagem, que Weber (2001) descreve assim: “Neste caso, os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural poderiam ser designados como ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado” (WEBER, 2001, p. 99).
A obra de Weber foi escrita no início do século XX e, agora, no século XXI, podemos dizer que a previsão mais pessimista de sua análise foi a que se concretizou (pelo menos até agora). O que temos visto neste segundo governo de Donald Trump é o espírito do capitalismo em sua forma mais explícita e cruel. Que me importam os outros – América first. Mas não percamos a esperança… Ainda há tempo para que surjam profetas inteiramente novos para anunciar um tempo em que a generosidade substitua a egoísmo, que o bem-estar de todos e do planeta tenha mais importância que o acúmulo de riquezas e que ao invés de guerras e conquistas tenhamos colaboração e partilha.
Referências
SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Investigação sobre sua Natureza e suas Causas. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1985. Livro I, Capítulo II.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.